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deutsch: Paradoxien der Menschenrechte

Artigo de ROBERT KURZ
in "ARCHIPEL", publicação do FORUM CIVIQUE EUROPÉEN
Junho 2003

Inclusão e exclusão da modernidade

Os paradoxos dos direitos do homem

Foi sempre em nome de princípios ideais que foram postos exércitos em marcha, que se mataram homens, se devastaram países e se destruiram cidades. A mais recente potência mundial e os seus vassalos não fogem à regra: no Iraque, junto com porta-aviões, tanques e helicópteros de combate, foi mais uma vez mobilizada a ideia dos direitos do homem como legitimação aos olhos do mundo.

Aquilo que, pelo contrário, sempre nos espanta é ver os opositores proclamarem a defesa dos mesmos ideais. Por todo o mundo, esses milhões de manifestantes contra a guerra não falam uma linguagem ideologicamente diferente da do governo americano. Em matéria de princípios, Noam Chomsky diz o mesmo que George W. Bush. As bombas caem em nome dos direitos do homem; e é em nome dos direitos do homem que se socorrem e se consolam as vítimas. Habitualmente os críticos afirmam que a realidade não corresponde aos ideais. Se existe um direito à vida e à integridade física, como se pode aceitar que as intervenções militares ocidentais matem mais inocentes do que os crimes dos ditadores e dos terroristas ? Os Estados Unidos, diz-se, servem-se dos direitos do homem apenas como pretexto para profanos interesses económicos e de poder; não os preocupam os direitos das populações mas sim o petróleo. É por isso, prossegue esta argumentação, que se lança mão de dois pesos e duas medidas: nos sítios onde os regimes se destacam pela sua boa conduta e aceitam, por exemplo, o estacionamento de aviões de combate norte-americanos (como a Turquia ou a Arábia Saudita), o autoproclamado polícia do mundo nada tem contra a pilhagem, a perseguição e o massacre de grupos inteiros da população e não se incomoda com as condições ditatoriais.

Relativamente aos factos, estes argumentos não são errados. O problema está na interpretação desses factos. Será que se trata apenas da inconsequência do poder imperial ocidental que espezinha os seus próprios princípios ? Neste caso, e seguindo esta mesma lógica, seria possível reivindicar a sua efectiva aplicação e a força brutal ficaria assim sem legitimidade. Ou, ao contrário, estarão as intervenções e os bombardeamentos, que nada têm de filantrópicos, em correspondência real e completa com a lógica dos direitos do homem ? Então o erro estaria do lado dos opositores, equivocados sobre a verdadeira essência desses princípios. À primeira vista, a segunda hipótese parece absurda. Não assenta o conteúdo dos direitos do homem no reconhecimento universal de todos os indivíduos por igual modo, sem qualquer diferença ? Como é que o desprezo pela existência de tantas pessoas poderia então ser compatível com os direitos do homem ?

Quem assim argumenta esquece que, já a montante, o processo normal e quotidiano da socialização global pelos mercados implica o não-reconhecimento permanente de inúmeras existências humanas. Quando os bombardeiros high-tech dos Estados Unidos largam a sua carga mortal em cima de justos e pecadores, também estão a utilizar, embora de maneira activa e violenta, a mesma lógica que, no dia-a-dia, se aplica passivamente, sem ruído e numa escala bem maior, através do sistema económico. Todos os anos milhões de seres humanos (entre eles muitas crianças) morrem de fome e de doenças pela simples razão de não serem solváveis [não terem com que pagar]. Claro que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento sem limites de todos os indivíduos como "homens a priori", portadores desses famosos "direitos inalienáveis". Mas, ao mesmo tempo, é o mercado que constitui o fundamento de todos os direitos, incluindo os direitos do homem elementares. A guerra da ordem mundial que mata seres humanos é conduzida em nome da liberdade do mercado, matando ao mesmo tempo seres humanos, e portanto também em nome dos direitos do homem que são impensáveis for a do contexto mercantil. Trata-se de uma relação paradoxal: o reconhecimento pelo não-reconhecimento, ou, ao contrário, o não-reconhecimento precisamente pelo reconhecimento.

A contradição aparente dissipa-se quando examinamos a definição de homem, na qual assenta este paradoxo. A primeira proposição desta definição diz: "o homem" é por princípio aquele que é solvável [que pode pagar]. O que, pela inversa, quer dizer que, por princípio, o indivíduo totalmente insolvável [que nada pode pagar] não pode ser um homem. Quanto mais um ser for solvável [puder pagar], mais se parecerá com um homem, e quanto menos preenche esse critério mais se afasta daquele estatuto.

Quando um milionário excêntrico lega a sua herança por testamento ao seu cão, esse animal, agora podre de rico, tornar-se-á, se seguirmos esta lógica, mais homem do que um menino das favelas. Mas neste exemplo a solvabilidade [capacidade de pagar] constitui apenas uma característica aparente e fortuita. Se entendermos a definição de homem como uma relação social que um cão, evidentemente, não pode exercer, então a solvabilidade [capacidade de pagar] caracteriza um sujeito do sistema de produção de mercadorias. Só um ser capaz de ganhar dinheiro pode ser um sujeito de direito. A capacidade de participar numa relação de direito está, assim, ligada à de participar, duma forma ou doutra, no processo de valorização do capital. Segundo esta definição, o homem tem de ser capaz de trabalhar, tem de ter qualquer coisa para vender (no limite até os órgãos do seu corpo). A sua existência deve preencher o critério da rentabilidade. É esta a condição silenciada do direito moderno em geral, e por conseguinte também dos direitos do homem.

Ao princípio falava-se de "direito natural". Os filósofos do Iluminismo ocidental, em particular, pretendiam que os indivíduos saem do ventre das mães na forma "natural" de sujeitos de direito. Mas esta forma é puramente social e tão pouco "natural" como um contrato de arrendamento ou a cor azul de um míssil intercontinental. Falava-se de "natureza" por pura razão ideológica: as formas sociais do sistema moderno de produção de mercadorias, o "trabalho" abstracto, a racionalidade da economia das empresas e do mercado total eram consideradas as formas "naturais" da vida humana em sociedade. Até hoje, pretende-se que o homem se socializa através do mercado segundo as mesmas "leis naturais" que levam o castor a construir represas e as abelhas a fabricar o mel. A relação entre os homens por contratos jurídicos para todas as acções da vida é uma condição do mercado global, e a pretensa natureza do capital e do mercado implicaria, portanto, uma pretensa natureza do homem enquanto sujeito de direito. Os direitos do homem deveriam ser, somente, a garantia elementar desta forma social do sujeito: um reconhecimento universal "do homem" segundo esta definição, e apenas isso.

Porém, sendo que não há nenhum automatismo biológico que determine que o indivíduo concreto nasça como sujeito de valorização e de direito, cria-se sistematicamente um vazio entre a existência real dos indivíduos e esta forma social. De certa forma, este vazio não é apenas "ontogenético", relativo ao ser humano particular, mas também "filogenético", relativo ao desenvolvimento histórico da sociedade. A formação do capitalismo, e intrinsecamente da forma geral do direito, era tão pouco "natural" que este sistema teve de ser imposto apesar de fortes resistências. Na origem, o "trabalho" abstracto para o mercado não era, a bem dizer, um direito que todos desejassem, mas uma relação coercitiva imposta com violência de cima para baixo, para transformar os homens em "máquinas de moedas". Aqui pode observar-se uma dupla imbricação paradoxal do "reconhecimento" com o "não-reconhecimento" na forma moderna do direito. O direito implica, na sua própria essência, uma relação de inclusão e de exclusão. Só a exigência desta forma é universal. Como já vimos acerca do carácter aparente da solvabilidade [capacidade de pagar], trata-se do domínio de uma abstracção social, incarnada na forma monetária e portanto do direito. Esta forma abstrai precisamente a existência física, as necessidades biológicas, sociais e culturais dos homens para os reduzir à existência nua enquanto unidades de dispêndio de energia, para o fim-em-si da valorização monetária. O homem evocado nos direitos do homem é exclusivamente o homem abstracto, portador e ao mesmo tempo servidor da abstracção social dominante. E só este homem abstracto é universalmente reconhecido.

Contudo isso significa que este reconhecimento inclui, ao mesmo tempo, um não-reconhecimento. As necessidades materiais, sociais e culturais estão, precisamente, excluídas desse reconhecimento fundamental. O homem reconhecido pelos direitos do homem só o é enquanto ser reduzido à abstracção social; primeiro, como o formulou o filósofo italiano do direito Giorgio Agamben, começa-se por reduzi-lo a uma "vida nua" definida por uma finalidade que lhe é estranha. O famoso "reconhecimento" não é mais do que uma reivindicação sobre a vida dos indivíduos, obrigados a sacrificar essa vida à função, tão banal quanto realmente metafísica, da valorização infinita do dinheiro pelo "trabalho". Só depois disso, secundariamente, para um resto de vida que afinal só lhes serve para se regenerarem para o mesmo objectivo totalitário, eles têm o direito de se qualificarem enquanto indivíduos que usufruem da sua vida própria. A satisfação das suas necessidades não passa de um subproduto deste movimento autónomo metafísico do dinheiro, ao qual eles são entregues precisamente pelo reconhecimento enquanto sujeitos abstractos do direito.

O reconhecimento paradoxal (do homem abstracto) pelo não-reconhecimento (do homem concreto, social e real) extrai a sua singular força de persuasão do facto de que o pior é sempre possível. Porque o não-reconhecimento relativo contido neste reconhecimento exclusivamente abstracto pode sempre transformar-se em não-reconhecimento absoluto: os homens que são "expulsos" do fim-em-si totalitário capitalista perdem, por esse facto, qualquer possibilidade de serem sujeitos e ficam então completamente fora da "capacidade de serem reconhecidos" enquanto homens reduzidos, apenas abstractos, e saem completamente desta definição do homem. Então, "objectivamente", já só representam pedaços de matéria, objectos naturais como o cascalho, os fetos dos bosques ou o bicho da batata. Já no século XVIII, percursor, o Marquês de Sade exprimira com muito cinismo esta consequência.

Sob uma tal ameaça, a infelicidade de ser reconhecido apenas como um homem abstracto e reduzido transforma-se na duvidosa sorte de ter, pelo menos nesta forma fantomática e negativa, um mínimo de existência social, de se parecer, por pouco que seja, com um ser humano. Pois, se o reconhecimento é apenas negativo e exige uma submissão, os "excluidos" escapam ainda menos à exigência totalitária do sistema.

A submissão dos homens a esta forma abstracta tira os seus galões do facto de essa submissão se revelar vantajosa, se compararmos com os que já não são sequer submissos, mas completamente extraídos da humanidade.

Se, entre a simples existência humana e o "direito de submissão", se cria este vazio sistemático, então os indivíduos não são "naturalmente" "homens" segundo esta definição, mas só podem tornar-se seres humanos e sujeitos de direito passando por um "processo de reconhecimento" selectivo. Este processo de selecção pode ser "objectivo" (segundo as leis da valorização e a situação do mercado) ou ser conduzido "subjectivamente" (segundo definições ideológicas ou estaduais de "amigo" ou "inimigo"). A verdadeira existência dos indivíduos pode, por este processo, ser rejeitada da mesma forma que uma mercadoria não reconhecida pelo mercado é considerada "inútil". E como último recurso, os bombardeamentos, ou como ultima ratio as armas nucleares, porão definitivamente um termo ao "processo de reconhecimento" tranformando realmente os indivíduos cujo "reconhecimento" já não se pode assegurar em matéria inerte.

Para isso, a promessa dos direitos do homem é já, em si mesma, uma ameaça: quando as condições não-ditas que definem "o homem" na modernidade não podem ser preenchidas, não há reconhecimento. Nos nossos dias, a maioria dos humanos já não pode preencher esses requisitos, mesmo que se esforcem, até ao auto-sacrifício, por se submeterem à forma abstracta do dinheiro e do direito. É previsível o fim da sua existência como "danos colaterais" do mercado mundial ou de intervenções da polícia mundial. Esta amarga conclusão não pretende denegrir as motivações de numerosos indivíduos e organizações que, em nome dos direitos humanos, defendem as vítimas e que enfrentam, muitas vezes com coragem, as potências dominantes. Mas esses esforços assemelham-se a um trabalho de Sísifo se não se conseguir ultrapassar a forma paradoxal e negativa desta sociedade mundial, decidindo quem, no fim de contas, é um "homem" e, consequentemente, definindo também os direitos do homem.

ROBERT KURZ